Direito Tributário Empresarial

É o presente para arquivar, e a quem interessar tornar disponível, algumas divagações no campo do Direito Tributário Empresarial, da Filosofia e outras áreas afins. Lauro Arthur G. S. Ribeiro - Advogado, Professor Substituto (UFPR - 2005/2006) Correções, críticas, sugestões: lauro.r@gmail.com

domingo, agosto 22, 2004

A Ordem Econômica e a sua indissociabilidade da tributação nas Constituições Brasileiras (1934 - 1967).

Em referências bibliográficas colhidas para a consecução do presente trabalho pudemos observar que a primeira referência constitucional sobre ordem econômica veio retratada na Constituição de 1934.
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Esta Carta Magna trouxe o tema econômico em destaque já em suas primeiras linhas. Cita o documento: “(...)os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte Constituição (...)”.
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O artigo 115 deste mesmo estatuto político dispôs que “A ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que possibilite a todos existência digna. Dentro desses limites, é garantida a liberdade econômica.”
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Em sede de estabelecimento dos ditames constitucionais pertinentes, estabeleceu regras e princípios a serem observados, dentre eles normas atinentes ao monopólio (art. 116), o fomento ao desenvolvimento do crédito (art. 117) e da produção (art. 121, a nacionalização dos bancos (art. 117), das minas e jazidas minerais (art. 119 § 4º) e o estímulo à formação de colônia agrícolas em áreas empobrecidas (art. 121, § 5º).
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Naquilo que dizia respeito à tributação a ordem econômica foi influenciada por meio de várias disposições que ora influenciavam a demanda agregada e ora inferiam em estímulo a determinadas atividades à época de interesse do constituinte, onde se previu, por exemplo, a não tributação dos combustíveis produzidos no país para motores de explosão (art. 17, VIII – afetou a demanda agregada) a imunidade dos estabelecimentos particulares de educação, gratuita primária ou profissional, oficialmente considerados idôneos (art. 154 – afetou indiretamente a demanda agregada através da redução do custo da prestação do serviço), a intervenção para a defesa contra os efeitos das secas nos “Estados do Norte” que obedecia a um plano sistemático e permanente, ficando a cargo da União, que devia aplicar, com as obras e os serviços de assistência, quantia nunca inferior a quatro por cento da sua receita tributária sem aplicação especial (art. 177 – que inferia em incentivo, fomento público e planejamento da atividade econômica), dentre outros outros dispositivos.
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Getúlio Vargas por sua vez, dando um novo matiz à questão da Ordem Econômica, fez constar da Constituição Federal de 1937 uma tese alinhada aos ideais liberais que permeavam o momento econômico internacional, estabelecendo em seu artigo 135 que:
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"Na iniciativa individual, no poder de criação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interesses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do controle, do estimulo ou da gestão direta.
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Ocorre que a efetiva intervenção no domínio econômico se dava por vias indiretas, já que nessa mesma mesma Constituição Federal foi criado o Conselho da Economia Nacional, a quem cabia um poder de veto de fato, já que seu parecer favorável era condição de admissibilidade do processo legislativo, a forma do art. 65 daquela Carta, conforme se vê:
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Art 65 - Todos os projetos de lei que interessem à economia nacional em qualquer dos seus ramos, antes de sujeitos à deliberação do Parlamento, serão remetidos à consulta do Conselho da Economia Nacional.
Parágrafo único - Os projetos de iniciativa do Governo, obtendo parecer favorável do Conselho da Economia Nacional, serão submetidos a uma só discussão em cada uma das Câmaras. A Câmara, a que forem sujeitos, limitar-se-á a aceitá-los ou rejeitá-los. Antes da deliberação da Câmara legislativa, o Governo poderá retirar os projetos ou emendá-los, ouvido novamente o Conselho da Economia Nacional se as modificações importarem alteração substancial dos mesmos."
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Em matéria tributária a intervenção de fato e direta do chefe de governo era dada pela proibição contida no art. 64 da iniciativa de lei pelo parlamento nesta matéria, o que se via pela seguinte dicção:
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"Art 64 - A iniciativa dos projetos de lei cabe, em princípio, ao Governo. Em todo caso, não serão admitidos como objeto de deliberação projetos ou emendas de iniciativa de qualquer das Câmaras, desde que versem sobre matéria tributária ou que de uns ou de outras resulte aumento de despesa.
§ 1º - A nenhum membro de qualquer das Câmaras caberá a iniciativa de projetos de lei. A iniciativa só poderá ser tomada por um terço de Deputados ou de membros do Conselho Federal.
§ 2º - Qualquer projeto iniciado em uma das Câmaras terá suspenso o seu andamento, desde que o Governo comunique o seu propósito de apresentar projeto que regule o mesmo assunto. Se dentro de trinta dias não chegar à Câmara a que for feita essa comunicação, o projeto do Governo, voltará a constituir objeto de deliberação o iniciado no Parlamento."
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Este período entendido por uma maioria da doutrina como ditatorial se estendeu até a promulgação de maneira democrática da Constituição Federal de 1946, que no seu artigo 145 sobre a ordem econômica estabeleceu que esta “deve ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando liberdade de iniciativa com a valorização do trabalho humano.”
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Nesta Carta, como instrumentos governamentais de intervenção, houve previsão da possibilidade de monopolização de determinada indústria ou atividade pela União (art 146), a repressão ao abuso do poder econômico (art. 148), dentre outros.
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Neste mesmo estatuto havia previsão de uma política fiscal que veio talhada em diversos pontos do texto constitucional, e que trouxe reflexos na ordem econômica, conforme podemos ver nos preceitos citados:
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Art 15 - Compete à União decretar impostos sobre:
I – (...)
§ 1º - São isentos do imposto de consumo os artigos que a lei classificar como o mínimo indispensável à habitação, vestuário, alimentação e tratamento médico das pessoas de restrita capacidade econômica. (g.n.)
§ 2º - ...
§ 4º A União entregará aos Municípios, excluídos os das Capitais, dez por cento do total que arrecadar do imposto de que trata o nº IV, feita a distribuição em partes iguais e aplicando-se, pelo menos, metade da importância em benefícios de ordem rural.
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Art 169 - Anualmente, a União aplicará nunca menos de dez por cento, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nunca menos de vinte por cento da renda resultante dos impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino.
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A hipótese da influência do dispositivo contido do artigo 15, parágrafo primeiro, supracitado, na ordem econômica, pode ser provada pela verificação do aumento da demanda agregada, que é efeito da redução de custo e, decorrentemente, preço final dos produtos básicos, servindo aos fins de prover a população de produtos básicos e essenciais[1], bem como os dispositivos contidos no art. 15 e 169 são forma expressa de promover o fomento estatal às atividades rural e de ensino.
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Com o golpe militar de 1964, que levou à nova Constituição Federal de 1967, veio nova redação sobre a matéria aqui discorrida cujo cerne encontra-se no art. 157, que transcrevemos:
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"Art 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:
I - liberdade de iniciativa;
II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
III - função social da propriedade;
IV - harmonia e solidariedade entre os fatores de produção;
V - desenvolvimento econômico;
VI - repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros.
§ 1º - (...)
§ 8º - São facultados a intervenção no domínio econômico e o monopólio de determinada indústria ou atividade, mediante lei da União, quando indispensável por motivos de segurança nacional, ou para organizar setor que não possa ser desenvolvido com eficiência no regime de competição e de liberdade de iniciativa, assegurados os direitos e garantias individuais.
§ 9º - Para atender à intervenção no domínio econômico, de que trata o parágrafo anterior, poderá a União instituir contribuições destinadas ao custeio dos respectivos serviços e encargos, na forma que a lei estabelecer.
(...).
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Nasce aqui, em sede constitucional[2], a CIDE - Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, que é a mais eloqüente prova histórica constitucional da tributação como instituto indissociável da ordem econômica no sistema jurídico brasileiro.
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Visto sob o aspecto histórico os efeitos da CIDE (arrecadação e aplicação pública dos recursos) não são novos. O que de fato erigiu-se à bem jurídico constitucionalmente tutelado é a afetação de determinados recursos arrecadados ao custeio dos respectivos serviços e encargos que seriam destinados a organizar setor que não pudesse ser desenvolvido com eficiência no regime de competição e de liberdade de iniciativa.
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Esta constituição, tal qual as demais que a antecederam, estabeleceram o uso da tributação como item intrínseco ao planejamento econômico através do estabelecimento de isenções e destinações específicas (afetações) de valores arrecadados em prol de um desenvolvimento programado.
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Ao fim desta resenha histórico-constitucional, temos que desde o início do século XX, no Brasil, temos uma ordem econômica prevista constitucionalmente cujos anseios, princípios e regras que se fizeram constar das sucessivas Cartas Magnas brasileiras, sempre se fizeram acompanhar do elemento da tributação como ensejador da consecução de seus fins, seja através da viabilização do aumento da demanda, seja através de fomentos públicos. Entende-se, assim, que bem demonstrada resta a tributação como elemento indissociável da ordem econômica desde que uma ordem econômica veio erigida à doutrina constitucional[3].
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[1] Numa primeira leitura do texto cheguei a comparar este instituto com o da seletividade que se incorporou à Constituição de 1988. Tal raciocínio pode encontrar subsídios na dissertação de mestrado de Regiane Binhara Esturílio, cuja defesa se deu na PUC-PR na recente data de 10 de agosto de 2004, que muito bem diz da não vinculação à capacidade contributiva (já que ricos e pobres comprarão arroz e feijão, ambos essenciais) mas sim à essencialidade do bem. Neste ponto vê-se da Constituição de 1946 que a isenção era dada ao artigo, e não à pessoa que o utilizaria ou consumiria.
[2] O Supremo Tribunal Federal em 1957 já havia julgado casos sob a expressa dicção de contribuição de intervenção no domínio econômico – RMS 3386, Rel. Ministro Edgard Costa, j. 02.01.1957, tendo por base jurídica os Decretos-Leis 4.382, de 1.942, e 5.998, de 1943.
[3] Não se quer aqui dizer que antes desta época não era a tributação dissociada da ordem econômica. O que se afirma aqui é que há a determinação de uma ordem econômica com limites jurídicos constitucionalmente postos a partir da Constituição Federal de 1934, que se pode então raciocinar e interpretar como parte integrante de um mesmo sistema jurídico ao qual pertence a tributação.

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