Direito Tributário Empresarial

É o presente para arquivar, e a quem interessar tornar disponível, algumas divagações no campo do Direito Tributário Empresarial, da Filosofia e outras áreas afins. Lauro Arthur G. S. Ribeiro - Advogado, Professor Substituto (UFPR - 2005/2006) Correções, críticas, sugestões: lauro.r@gmail.com

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Justiça Tributária Substancial em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental

INTRODUÇÃO
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No presente estudo busca-se descrever as raízes principiológicas constitucionais que devem informar a jurisdição constitucional fiscal em ADPF – Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental e que, nos termos do que restará aqui demonstrado, deve resultar aos jurisdicionados em justiça tributária substancial.
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Diz-se justiça tributária substancial aquela que se afasta da mera estrutura formal do texto jurídico tributário para aproximar-se daquela que incorpora conceitos mais amplos e que repele a positivação de meras formas legais e sua interpretação isolada. Eis aqui o contraponto pretendido neste estudo, entre justiça tributária presumida formal positivada e justiça tributária real substancial[1] como possíveis resultados práticos da jurisdição constitucional em sede de Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
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Sabe-se que no passado formas legais impostas de maneira supostamente legitimada por um poder legislativo já levaram à escravidão e segregação racial, da mesma maneira como hoje vemos hipóteses de confisco consubstanciadas em multas tributárias absurdas que restam repelidas pelo Supremo Tribunal Federal[2] em sede de controle concentrado da constitucionalidade, pela aplicação do (i) princípio da proporcionalidade[3] (hipótese de justiça tributária substancial já que inexiste expressa previsão formal e expressa de aplicação desse princípio ao sistema tributário, mas em verdade pode-se deduzir a violação do sistema jurídico como um todo quando, em uma hipótese concreta, resta violado este princípio) e (ii) princípio da vedação ao confisco (justiça tributária formal, eis que há expressa previsão de aplicação desse princípio à ordem tributária, CF art. 150, IV, e substancial na exata medida de sua interpretação integrativa aos demais ditames de proteção patrimonial ao contribuinte).
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A questão da servibilidade dos princípios constitucionais outros, não constantes topologicamente da específica ordem tributária constitucional brasileira, na definição de uma justiça tributária substancial, também terá a sua breve análise nesse estudo, na forma como se vê destacado o princípio da proporcionalidade aplicado a um caso concreto tributário sem que se olvide a unicidade do sistema jurídico na definição do justo.
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Pretende-se demonstrar, daí, que as alegações de “justiça” de qualquer Estado, baseadas em formas constitucionais ou legais isoladas, vistas destacadas de um sistema de justiça substancial, em especial de toda a justiça substancial que possa o hermeneuta haurir do texto constitucional, nada mais é do que prever uma determinada imposição fiscal não ao serviço do Estado, mas exclusivamente a serviço do soberano (que se diz representante do Estado) e de suas também exclusivas razões, o que implica em suma última na dedução de justiça tributária formal não substancial.
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Destacar-se-á os princípios atuais a que há de submeter-se a política fiscal para que possa ser qualificada de justa, sem qualquer pretensão de exaurir em hipótese todos os possíveis princípios que possam ser deduzidos e que devam restar observados em matéria de jurisdição constitucional.
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Por fim destaca-se que a presente monografia nasceu de um estudo outro, preliminar a esta, e que tinha por objeto de cognição a exploração do que se poderia considerar como preceito fundamental tributário a restar assegurado pela via de ADPF - Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
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Ante a falta de bibliografia específica sobre o tema propõe-se, em um passo atrás, mas que se reputa extremamente relevante para definir hipóteses concretas de aplicação daquele instituto em matéria tributária, um ponto de vista que pretende vislumbrar cientificamente alguns limites de alcance dos preceitos fundamentais dentro do Sistema Tributário Nacional.
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Não há como analisar-se uma justiça tributária substancial em matéria constitucional, naquilo que diz respeito aos seus princípios fundamentais, sem que tenhamos em mente o fato de que existem destinatários preponderantes de todos os preceitos e princípios constitucionais, e aqui quer-se referir à preponderância em face dos bens jurídicos tutelados pelos mesmos.
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A tributação em si mesma vista no texto constitucional contém princípios preponderantemente destinados ao Estado e ao Contribuinte. O Estado sem a legitimação constitucional de competência para criar hipótese de imposição jamais poderia praticar uma violência real estatal contra o patrimônio do indivíduo-contribuinte (na Grécia antiga, por falta dessa legitimação, era impensável a tributação geral por caracterizar tirania ou rapina[4]), bem como várias previsões constitucionais de limitação da atuação estatal – princípios constitucionais que também buscam preservar o bem comum - trazem em si, formalmente, uma proteção aos cidadãos que suportam a legítima violência estatal contra seu patrimônio.
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Fritz Neumark chama a atenção para o fato de que os princípios constitucionais de imposição preservam diversos interesses de diversos entes, em seu “Principios de La Imposición”, in verbis:
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Como veremos mais adiante, alguns destes princípios perseguem a salvaguarda de interesses especificamente fiscais, outros tratam de assegurar, ao menos primariamente, os direitos dos contribuintes, qualquer que seja sua justificação, e finalmente um terceiro grupo é de natureza político econômica. Ademais, o estabelecimento de uns princípios de imposição pode obedecer, por uma parte, a razões puramente científicas (teórico-cognoscitivas), em cujo caso se tratará de obter com eles uma espécie de guias ou orientações para uma política fiscal racional, ou, o que vem a ser o mesmo, de adquirir uns critérios para definir um sistema fiscal racional; por outra parte, os postulados positivos podem utilizar-se, em forma anticientífica ou pseudocientífica, a serviço de concretos interesses práticos, sejam os do Estado ou do soberano que afirma ser o representante do mesmo, sejam os dos mais heterogêneos “grupos de pressão”[5].
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Essa colocação de proteção diversa de interesses e pessoas, que parece evidente e óbvia, merece ser reforçada nesse primeiro momento para que também por força dela possa haver a distinção, mais adiante, de quais são os princípios e preceitos constitucionais que podem ser objeto de proteção jurisdicional pelo “veículo” processual (ADPF) regulado pela Lei 9882.
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Nota-se que o autor supra, ao identificar os destinatários distintos para cada espécie de princípio (e a digressão aplica-se para os preceitos constitucionais conforme justificar-se-á mais adiante), já faz expressa indicação de uma das causas de inexistência no campo administrativo de justiça fiscal substancial, e que enseja reflexão sobre o alcance prático da ADPF, qual seja, o “uso” anticientífico ou pseudocientífico por parte de “soberanos” dos princípios expressamente aplicáveis à ordem tributária.
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A questão que se busca resolver de alcance da ADPF passa pelo dilema de a mesma se referir a princípios fundamentais sem indicar precisamente quais são. Buscar princípios fundamentais aplicáveis à ordem tributária exclusivamente dentro do capítulo destinado à mesma é um equívoco dado o fato de que a unicidade do direito não exclui a aplicação de princípios e preceitos gerais e fundamentais de qualquer capítulo da estrutura constitucional. Essa colocação (da unicidade do direito), em si só, já põe por terra qualquer pretensão de inaplicabilidade, pela via da ADPF, de manifestação jurisdicional constitucional pelo STF sobre uma determinada norma tributária infraconstitucional em face do princípio da proporcionalidade ou da legalidade ampla, por exemplo.
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Pode-se afirmar daí que jamais será deduzida uma justiça substancial em matéria tributária em uma estreita e exclusiva redação (do texto) das formalidades constitucionais de imposição (competência etc.), ou mesmo restringindo as hipóteses de proteção constitucional ao contribuinte aos princípios constantes do Capítulo do “Sistema Tributário Nacional”.
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No Brasil essa obviedade supracitada sobre a amplitude de aplicação da ADPF em matéria tributária deve prevalecer, inclusive na doutrina, para que este instituto não tenha o mesmo destino do Mandado de Injunção: a ineficácia do texto constitucional.
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A reduzida produção científica sobre o assunto - ADPF em matéria tributária - em muito contribui para o esvaziamento do instituto processual nesse campo, o que é um imenso contra senso em face da necessidade de instrumentos processuais contra as sucessivas violências estatais praticadas através de inúmeras leis, medidas provisórias e, inclusive, Instruções Normativas, que “atropelam”, diuturnamente, princípios e preceitos constitucionais.
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Em verdade o contribuinte, perante a União e Secretaria da Receita Federal, encontra-se perdendo, no plano da eficácia dos princípios fundamentais, um de seus mais óbvios pressupostos: antes de ser entendido como um tão só contribuinte é necessário que seja considerado como ser humano. E o tratamento desumano aos contribuintes pode ser provado e afirmado quando se vê o fisco lavrando representações fiscais para fins penais antes de finalizado o processo administrativo de impugnação do lançamento, o que nada mais é do que tentar impor uma prisão “penal” por dívida civil, principiologicamente vedada, expressamente, no art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal. Prossegue-se neste mesmo argumento dizendo sem sombra de qualquer dúvida que nem mesmo passa pela jurisprudência de qualquer dos Tribunais Regionais Federais[6] a real aplicação de tal princípio ou resta questionada a exata extensão do art. 168-A do Código Penal (dolo específico) em face desse princípio constitucional. Note-se daí que a opção de pagar salários em detrimento do adimplemento das obrigações tributárias[7] está hoje impondo condenações no âmbito criminal a contribuintes sem que sequer se perquira sobre a existência de dolo[8].
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A toda evidência que a interpretação emprestada ao art. 168-A do Código Penal, de maneira a não considerar deduzida a necessidade de dolo, deve ser objeto de declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto. Trata-se de caso clássico de suposta justiça tributária formal baseada em meras “formalidades” legais permeadas de interpretações da mais evidente inconstitucionalidade e que vem, com a devida venia, em absurda posição sustentada pelo Superior Tribunal de Justiça em sua jurisprudência.
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Façamos aqui, então, uma breve ilação de lógica científica: “fosse” humano o contribuinte seria necessário apurar o dolo, mas como o Superior Tribunal de Justiça o considera em um pressuposto não humano, ou seja, de mero ente pagador desprovido de vontade ou razão, basta um lançamento contábil (de desconto da contribuição devida pelo empregados), que jamais fez aparecer dinheiro em qualquer caixa de qualquer empresa de qualquer país, para presumir jure et jure que havia o dinheiro no caixa referente ao desconto(!) e que este não reverteu aos cofres públicos. A imensa incoerência da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que se baseia em suposta justiça tributária formal, nada mais é do que escancarada injustiça tributária substancial.
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A hipótese acima tratada demonstra, para os fins deste estudo, que o Estado segrega no campo da eficácia os princípios constitucionais que legitimam a ameaça de prisão de um contribuinte qualquer – o que resulta no almejado resultado arrecadatório dessa ameaça - em detrimento da ordem jurídica com todos os demais princípios, fazendo aparecer uma suposta justiça tributária que se impõe a qualquer possível cidadão, mas que muito pouco guarda de coerência com o todo que se pode deduzir do sistema jurídico vigente.
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O que se dizer do princípio constitucional fundamental da dignidade humana, que também é a dignidade do contribuinte, quando este se vê sujeito a uma jurisprudência que o obriga a “magicamente” fazer aparecer dinheiro em seu caixa, como se as presunções positivistas tivessem o efeito de uma casa da moeda, já que em cada controladoria (contabilidade) de cada empresa brasileira, a cada lançamento contábil diz a corte máxima infraconstitucional que se deve fazer aparecer um crédito no caixa da empresa para fazer frente às obrigações tributárias?
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Pode-se fazer outra demonstração muito clara da violação de preceitos e princípios fundamentais quando vemos o fisco causar desequilíbrios de mercado ao dar causa a falências de empresas que geram lucros operacionais ou quando por força de aplicação de multas confiscatórias altera-se a estrutura de custos de uma determinada empresa a ponto de ver seu concorrente dominar o mercado. Exemplo clássico dessa intercorrência é o mercado de motores elétricos no Brasil onde as concorrentes da hoje maior produtora de motores foram reduzidas a “quase pó”[9] pela Secretaria da Receita Federal e INSS e o resultado disso foi uma concentração de mercado da ordem de 85% nas mãos da competente atrual líder de mercado. Há alguma dúvida sobre a violação de inúmeros princípios constitucionais no fato do abuso na aplicação das multas previstas na legislação? É essa a aplicação real do princípio constitucional da legalidade, em detrimento de um país inteiro?
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Examinado assim o foco das pessoas físicas e jurídicas bem como os direitos difusos protegidos em preceitos e princípios constitucionais gerais, vê-se que há generalidade explícita de aplicação de todos os princípios fundamentais a casos concretos fiscais, e que a resistência de sua observância parte do poder executivo, que, v.g. (i) desvirtuou o princípio da legalidade para justificar a imposição de multas confiscatórias, (ii) que mutilou o princípio da progressividade para em escancarada inconstitucionalidade estabelecer, por exemplo, aumento da CSLL das instituições financeiras, (iii) que esfacelou o princípio da livre concorrência ao impor desigualdades de mercado entre empresas concorrentes (em alguns casos quase chegando ao dobro da carga tributária a ser suportada por algumas empresas em face de outras, suas concorrentes), nada mais significa do que a total inversão dos valores sociais fundamentais em nome de uma arrecadação que padece de legitimidade ampla[10] constitucional. Em outras palavras, inexiste no Brasil qualquer garantia de justiça tributária substancial baseada na observância geral de preceitos e dos princípios fundamentais[11].
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Inicialmente há que se verificar se a expressão preceito fundamental pode ser entendida sempre como uma regra inserta na Constituição Federal ou também compreende princípios constitucionais.
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É sabido que doutrinariamente há diferença entre o que seja um regra e um princípio. Tal corte epistemológico vem em diversos autores e de fato a relevância da distinção em muito auxilia o hermeneuta na interpretação do direito.
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Adotamos aqui a síntese de Humberto Ávila, em sua obra “Teoria dos Princípios”:
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Essa evolução doutrinária, além de indicar que há distinções fracas (Esser, Larenz, Canaris) e fortes (Dworkin, Alexy) entre princípios e regras, demonstra que os critérios usualmente empregados pêra a distinção são os seguintes:
Em primeiro lugar, há o critério do caráter hipotético-condicional, que se fundamenta no fato de as regras possuírem uma hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao modo se, então, enquanto os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para futuramente encontrar a regra para o caso concreto. Dworkin afirma: ‘Se os fatos estipulados por uma regra ocorrem, então ou a regra é válida, em cujo caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou ela não é, em cujo caso ela em nada contribui para a decisão’. Caminho não muito diverso também é seguido por Alexy quando define as regras como normas cujas premissas são, ou não, diretamente preenchidas.
Em segundo lugar, há o critério do modo final de aplicação, que se sustenta no fato de as regras serem aplicadas de modo absoluto tudo ou nada, ao passo que os princípios são aplicados de modo gradual mais ou menos.
Em terceiro lugar, o critério do relacionamento, que se fundamenta na idéia de a antionomia entre as regras consubstanciar verdadeiro conflito, solucionável com a declaração de invalidade de uma das regras ou com a criação de uma exceção, ao passo que o relacionamento entre os princípios consiste num imbricamento, solucionável mediante ponderação que atribua uma dimensão de peso a cada um deles.
Em quarto lugar, há o critério do fundamento axiológico, que considera os princípios, ao contrário das regras, como fundamentos axiológicos para a decisão a ser tomada.
(...)
2.4.2 Critérios de dissociação
2.4.2.1 Critério da natureza do comportamento descrito
As regras podem ser dissociadas dos princípios quanto ao modo como prescrevem o comportamento. Enquanto as regras são normas imediatamente descritivas, na medida em que estabelecem obrigações, permissões e proibições mediante a descrição da conduta a ser adotada, os princípios são normas imediatamente finalísticas, já que estabelecem um estado de coisas para cuja realização é necessária a adoção de determinados comportamentos. Os princípios são normas cuja qualidade frontal é, justamente, a determinação da realização de um fim juridicamente relevante, ao passo que característica dianteira das regras é a previsão do comportamento.”
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Claro, portanto, que se temos em mente que preceito fundamental é sinônimo exclusivamente de regra, teríamos que excluir da apreciação de uma eventual ADPF a possibilidade de considerar-se os princípios constitucionais, e não poderia então o STF considerar os aspectos finalísticos estatais fundamentais das disposições dos mesmos em um determinado caso concreto.
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Em sentido contrário tem-se que se a expressão “preceito fundamental” considera regras e princípios constitucionais, então pode o legitimado pleitear, em um determinado caso concreto tributário, inclusive, a inaplicabilidade de uma regra (lei), já que esta se submete aos princípios constitucionais e pode-se em função desses princípios deduzir-se a violação do “preceito fundamental” pela própria norma (regra).
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Em exercício acadêmico sobre a determinação do que seja preceito fundamental encontramos o resumo apontado por Renato de Lima Castro em artigo:
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A matéria, no âmbito doutrinário, não é pacífica. Em sede jurisprudencial, o STF ainda não firmou orientação a respeito.(...)
CELSO RIBEIRO BASTOS E ALÉXIS GALIÁS DE SOUZA VARGAS registram que ‘a CF, ao referir-se a preceitos fundamentais demonstra o papel que o veículo processual visa a cumprir, que é de proteger a nação das situações que violentam aquilo que lhe é mais sagrado, e que há de mais valoroso em seu sistema jurídico. Não é a lesão a qualquer norma formalmente constitucional que poderá ensejar a argüição. Haverão de ser levados em conta os preceitos maiores da CF que, por não estarem definidos na legislação em comento, demandarão um trabalho doutrinário e jurisprudencial
(...)
CARLOS MARIO DA SILVA VELLOSO, em lapidar preleção e oportunas citações, afirma que preceito fundamental não se confunde com princípios constitucionais fundamentais, conforme asseverado por DAVID ARAÚJO, porque ‘os preceitos constitucionais fundamentais não são apenas os princípios fundamentais inscritos nos arts. 1º a 4º da CF. Ensina JOSÉ AFONSO DA SILVA: Preceitos fundamentais não é expressão sinônima de princípios fundamentais. É mais ampla, abrange a este e a todas as prescrições que dão sentido básico do regime Federal e especialmente as designativas de direitos e garantias fundamentais’
O Min. OSCAR DIAS CORREA, integrante da comissão elaboradora do anteprojeto da L. 9.882/99 pontificou, no voto proferido na ADPF 01 que ‘cabe exclusiva e soberanamente ao STF conceituar o que é descumprimento de preceito fundamental decorrente da CF, porque promulgado o texto constitucional é ele o único, soberano e definitivo intérprete, fixando quais são os preceitos fundamentais, obedientes a um único parâmetro – a ordem jurídica nacional, no sentido mais amplo possível. Está na sua discrição indicá-los’”.
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Apesar de não haver por parte dos autores o enfrentamento da dicotomia entre regras e princípios, pode-se deduzir das assertivas que pela amplitude pretendida como legítima não há como escapar à inserção dos princípios constitucionais como preceitos fundamentais para o fim da ADPF.

À toda evidência vê-se que “Descumprimento de Preceito Fundamental” é expressão sinônima a “Descumprimento de Regras e Princípios Constitucionais Fundamentais” e a expressão “Fundamental” é ampliada para além das hipóteses do art. 1º e 4º da CF na forma, e almejada amplitude, indicadas pelo Min. Oscar Dias Correa.
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Antes de qualquer ilação acadêmica sobre o presente ponto é de se reforçar que no plano da eficácia não existe razão acadêmica para isolar qualquer princípio constitucional fundamental “fora” do Sistema Tributário Nacional.
Assim é que no caso concreto qualquer regra ou princípio constitucional pode ser considerado em qualquer relação tributária concreta. Vale a máxima da unicidade do direito e da vigência de todos os seus princípios em detrimento de qualquer segregação material meramente formal ou pseudocientífica.
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Daí porque o aspecto de generalidade na observância dos princípios que devem informar uma justiça substancial num determinado caso concreto, apreciado em sede de jurisdição constitucional de viés tributário, pode e deve observar a Constituição Federal em seu todo e muito mais especialmente nos seus princípios pressupostos (fundamentais).
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Aqui vale observar que o uso pseudocientífico ou anticientífico pelo soberano dos princípios de imposição, na forma supracitada, indicada por Fritz Neumark, ganha a propriedade de violação científica na exata medida da necessidade de sua (dos princípios de imposição) segregação do restante do direito. Fosse o oposto não haveria segregação dos princípios e estes seriam observados na totalidade dos bens tutelados constitucionalmente.
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Conclui-se que o princípio da legalidade, mesmo esse, quando utilizado isoladamente para justificar qualquer formalidade fiscal como justa pode nada significar em termos de justiça tributária substancial.
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O mesmo Fritz Neumark chama a atenção do hermeneuta para o aspecto da generalidade, âmbito e fins dos princípios de imposição, in verbis:
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“Que grau de generalidade podem reivindicar os postulados de imposição? São aplicáveis a todos os ‘setores’ da economia financeira pública de um país (talvez incluído o setor parafiscal) e com independência do grau de desenvolvimento econômico, ou bem seu âmbito de aplicação deve limitar-se por uma ou outra consideração.”
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E aí é que se sobressai a questão maior para aferir-se o âmbito de aplicação: a par da existência dos princípios de imposição se nos apresenta a questão dos fins a que podem e devem servir os mesmos.
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Tem-se portanto que o grau de generalidade de determinado princípio constitucional de imposição é determinado pela necessidade de alcançar todas as efetivas relações concretas que infiram em adequação, ou não, a estes, sejam eles princípios de imposição jurídicos fundamentais, princípios de imposição constitucionais impositivos ou princípios-garantia de imposição. Assim podemos reforçar o limite da generalidade sob o foco dos fins a serem alcançados pelos princípios de imposição[12].
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Ocorre que a recíproca é verdadeira, já que visto sob o foco dos demais princípios constitucionais, todos também tutelando bens jurídicos e fins a alcançar, surgem outros limites à generalidade dos princípios de imposição.
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Volta-se, após a digressão feita, à conclusão de que essa generalidade tantos dos princípios de imposição quanto dos princípios fundamentais decorre da unicidade do direito e a questão da dedução de regra a ser aplicada no caso de descumprimento de preceito fundamental passa a ser resolvida na doutrina clássica do Direito pela adoção dos postulados de harmônica convivência dos princípios constitucionais.
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A violação de uma regra constitucional pode ser facilmente aferida pelo julgador em sede de ADPF, na exata medida em que regras são ditames claros dos quais se deduz cumprimento ou não.
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Já a análise conjunta, ou a interpretação integrativa de preceitos fundamentais, em sua forma de princípios, deve observar premissas para viabilizar ao intérprete a conclusão de violação a ser reparada pela via da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
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O que o governo brasileiro faz, através de suas procuradorias, é exatamente tentar obstar raciocínios integrativos, já que dificilmente as medidas provisórias, por exemplo, resistiriam ao pressuposto de um procedimento democrático (princípio e preceito fundamental) para sua edição como lei.
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Daí que na doutrina de Humberto Ávila[13] temos como critérios para uma interpretação integrativa dos princípios: (i) especificação dos fins ao máximo: quanto menos específico for o fim, menos controlável será sua realização; (ii) pesquisa de casos paradigmáticos que possam iniciar esse processo de esclarecimento das condições que compõem o estado ideal de coisas a ser buscado pelos comportamentos necessários às sua realização; (iii)exame das similaridades capazes de possibilitar a constituição de grupos de casos que girem em torno da solução de um mesmo problema central; (iv) verificação da existência de critérios capazes de possibilitar a delimitação de quais são os bens jurídicos que compõem o estado de coisas e de quais são os comportamentos considerados necessários à sua realização; e (v) descobertos o estado de coisas e os comportamentos necessários à sua promoção, torna-se necessária a verificação da existência de outros casos que deveriam ter sido decididos com base no princípio em análise.
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Assim é que temos a perfeita comunhão de finalidades entre o princípio da moralidade pública (CF art. 37) com o princípio do não confisco (CF art. 150), e que, por exemplo, restaram violados, ambos, quando o INSS, cobrando uma carga tributária insuportável, levou a leilão o prédio de propriedade da Santa Casa de Paranaguá, uma instituição de auxílio à previdência (!), em novembro de 2004.
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A paralisação das atividades de uma casa de saúde, que preponderantemente atende a pessoas necessitadas, não pode ser um bem menor do que o cumprimento de uma legalidade pobre de valores e obtusa caracterizada por um imenso desserviço social.
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Daí porque, nesse caso concreto, a bem da moralidade pública e da prestação de relevantes serviços de saúde, e ante a prova de excessiva carga tributária, que levou um serviço social à falência, antes tivesse sido reconhecido o caráter confiscatório específico do valor das contribuições do que se tivesse privado uma população inteira de um serviço de assistência social.
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Tais fatos do fundo fenomenológico comprovam que aos soberanos brasileiros pouco importam os princípios sociais, se uma Santa Casa de Misericórdia está aberta ou não ou se um determinado tributo em um determinado caso concreto é confiscatório ou não. A leitura do soberano do texto da Constituição Federal se limita a deduzir, parcialmente, todos os princípios que legitimam sua violência contra o patrimônio do contribuinte, seja ele essencial ao cumprimento de um serviço social ou não, impondo um ônus cada vez maior em troca de um bônus cada vez menor.
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1. Em matéria tributária, entende-se por preceito fundamental todo e qualquer preceito constitucional que venha a ter sua aplicabilidade considerada em determinado caso concreto e que tenha característica estruturante da relação jurídica considerada.
2.Em matéria tributária tanto as regras como os princípios e os postulados normativos (H. Ávila) constitucionais podem e devem ser considerados como preceitos fundamentais para o fim de argüição de descumprimento.
3.A função de interpretar-se de maneira ampla o texto constitucional, observando a característica de unicidade do sistema jurídico vigente para determinar ou não a violação de determinado preceito fundamental é imprescindível à obtenção de justiça tributária substancial.
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BIBLIOGRAFIA
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Utilizada:
ÁVILA, HUMBERTO, Teoria dos Princípios , Malheiros Editores, São Paulo, 2003.
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito Constitucional. 6ª Ed. Coimbra: Almedina, 1995.
CARRAZZA, Roque A., Curso de Direito Constitucional Tributário, 18ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002.
FERRAZ, Roberto, artigo “Da Hipótese ao Pressuposto de Incidência – em Busca do tributo Justo” in Direito Tributário, 1ª Ed. São Paulo, Quartier Latin, 2003.
NEUMARK Fritz, Principios de la Imposicion, 1ª Ed. Madrid, Instituto de Estudios Fiscales, 1974.

Consultada:
MARINS, James, Política Jurídico-Fiscal, Artigo.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Ordem Econômica e Desenvolvimento na Constituição de 1988, Rio de Janeiro: APEC, 1989.
SILVA, José A., Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 2001.SOUTO, Marcos J. V., Aspectos jurídicos do planejamento econômico, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2000.
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Notas
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[1] Vale dizer que na concepção de Paulo de Barros Carvalho está-se a defender que a administração de fato deduza a regra, o comando da norma, ao invés de limitar-se à leitura fria do texto, que exatamente por isso (ser fria e desprovida de uma hermenêutica de plano principiológico constitucional) passa a não conter em si a substancialidade de justiça almejada, e deduzida em face da unicidade do sistema jurídico.
[2] RE 220.284-6 – São Paulo e ADIN 551-1 – Rio de Janeiro
[3] Humberto Ávila diz ser o princípio da proporcionalidade na verdade um postulado normativo, sustentando que se trata de uma metanorma, na exata medida em que estabelece a estrutura de aplicação de outras normas estruturas e regras. Como tal, ele permite verificar os casos em que há violação às normas cuja aplicação estruturam.
[4] Cita o Prof. Roberto Ferraz em seu artigo “Da Hipótese ao Pressuposto de Incidência – em Busca do tributo Justo” que: “Entre os gregos clássicos, a exigência de tributo permanente, isto é, diferente dos tributos extraordinários destinados às guerras pérsicas, cujo pagamento constituía elevada honra para o cidadão, configuraria a tirania, eis que ali também a imunidade dos cidadãos e de seus bens à tributação era da essência de sua liberdade
[5] Mais adiante cita Fritz Neumark que em matéria de precisão conceitual sobre determinados princípios de imposição o que se vê é a distorção por parte dos soberanos de seu conteúdo de forma a amoldar-se às suas conveniências. O texto de Neumark, entregue à comunidade científica em 1969, e isso depois de anos de interrupção na sua realização por força de convalescência do autor, remanesce atual no Brasil de hoje onde conquistas constitucionais como a progressividade, aplicável “sempre que possível” sofre mutilações de conteúdo, tal qual o aumento da CSLL das instituições financeiras, sob a alegação de ser esta atividade “evidentemente mais lucrativa” (Ferraz: 2003).
[6] O Tribunal Regional Federal da 4ª Região não mais admite a discussão, tendo inclusive editado enunciado de súmula para repelir a alegação.” SÚMULA 65 -A pena decorrente do crime de omissão no recolhimento de contribuições previdenciárias não constitui prisão por dívida. DJU (Seção 2) de 03-10-2002, p.499 Rep. DJ (Seção 2) de 07-10-2002, p. 487”
[7] Com os tribunais fechando os olhos para a diferença entre lançamento contábil de desconto das contribuições dos funcionários, com a real disponibilidade em caixa de tais valores.
[8] RESP 612120 / RJ; AgRg no RESP 470961 / RS; AgRg no RESP 609085 / SC.
[9] O autor da monografia foi gerente jurídico de uma das concorrentes.
[10] O termo ampla é meramente enfático, já que ou há legitimidade ou não há. A questão de o governo alegar “alguma” legitimidade não implica em que haja qualquer legitimidade.
[11] A verdade histórica que se apurará mais adiante parece apontar para a ilegitimidade dos critérios de escolha dos Ministros do Supremo Tribunal Federal pelo Presidente da República, bem como não se vê como possa haver a desvinculação, nos dias de hoje, da Suprema Corte, do Poder Executivo, face às peculiaridades do momento político do início do século XXI.
[12] Veja-se o caso da chamada norma tributária indutora.
[13] Teoria dos princípios. op. cit.

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